Sejam bem-vindos, caríssimos!
Este é um domo destinado à interação e introspecção, as duas faces complementares de nossa condição humana.
Após uma breve introdução, performada pelo sombrio poema de Edgar Allan Poe, meu primeiro post será exatamente sobre a perspectiva do "Corvo", uma metáfora suntuosa sobre a natureza obscura e esquiva do ser humano.
Sintam-se convidados a refletir comigo e compartilhar suas próprias acepções.
O REFÚGIO DO EGO
Quantas vezes vimos o sofrimento? Quantas vezes vivemos angústias e desgostos que nos abalaram tal, a fazer-nos cair em desespero? E quanto sofrimento ainda teremos que ver e sentir, antes de apartar-nos por entre hostes celestiais? E depois?
Maestralmente, o poeta contemplou-nos com uma apologia da alma e seus anseios. Muito mais que isso, ele apresentou-nos a própria existência, como se quisesse fazer-nos despertar de um torpor induzido pelos nossos medos e paixões.
O protagonista, triste e desiludido com a morte de sua amada Lenore, em uma noite de Dezembro, tenta apaziguar a dor com a leitura de antigas escrituras. De repente, recebe um visitante inesperado em seus umbrais. O Corvo, sem cerimônia, pousa sobre o busto de Athena, e profetiza friamente a morte do anfitrião.
Ora, o protagonista é a própria imagem do Ego, lutando contra os sentimentos de agonia trazidos pela perda de um ente querido. É um momento em que a razão perde para a emoção, e a defesa é a negação. O ego nega o fim do vínculo, enquanto a realidade toca cruelmente aos umbrais. Os umbrais, a câmara, representam a obscuridade consciente em que o ego encontra refúgio. Longe do mundo exterior, a câmara é uma saída para evitar o enfrentamento de uma existência sem outrem. Enclausurados num mundo romântico, pretendemos agir com naturalidade, dar continuidade à rotina e aos planos que fizemos enquanto partes de uma relação com outra pessoa. Tão bela, tão pura, tão idealizada.
Então, surge o Corvo para atormentar. O visitante do submundo significa a realidade que evitamos enfrentar. Ele é o pesadelo de quem sofre pelo luto. O Corvo vem, impassível, instigando nosso ego com palavras duras, porém verdadeiras. E somos obrigados a despertar.
A sombra do Corvo esparramada pelo chão liberta a alma do indivíduo. A mensagem que o Corvo traz, como um agente ancestral, é a Memória e o Pensamento (Muninn e Huginn - próximos posts). A Memória é um reflexo do passado, que faz parte do presente. O Pensamento é nossa capacidade de superar os obstáculos e viver no contexto real. Apesar de ser um embaixador da morte, o Corvo dá fim a uma fase, e permite o início de outra.
A reflexão não é sobre a maneira como cada um enfrenta o luto, ou como cada um lida com as situações difíceis. Nem mesmo sobre os limites de idealização de uma pessoa querida, e sobre a vontade de dar continuidade aos planos que fizeram juntos.
A questão emerge da capacidade do ser humano em continuar sua jornada, admitindo que aquela criatura amada não mais o acompanha. Este ponto serve tanto para separações voluntárias como separações compulsórias, o sofrimento sempre será grande para uma das partes (ou todas elas).
Constantemente nos refugiamos de situações que nos desagradam em um retiro interno. Esquecemo-nos de nós mesmos e de nossa vida, pois estamos ocupados demais revivendo o passado, ou vivendo POR alguém que não está mais ao nosso lado. Apenas quando a realidade vem ao nosso encontro, inexorável, é que nos damos conta do tempo que perdemos e das oportunidades que deixamos passar.
Todos temos momentos, fases pelas quais precisamos passar para crescer e agregar experiência. Porém, o sofrimento cultivado só perpetua os momentos ruins. Às vezes bons momentos passam por nós, mas não os percebemos porque a carga do receio é maior. As Memórias existem e merecem ser guardadas com carinho e prudência. Porém, os Pensamentos devem ser fortes o suficiente para erguer o nosso ego e transportar-nos pelas veredas da vida.
Se algo lhe faz sorrir, entregue-se. Se algo lhe dá prazer, entregue-se. Se alguém lhe dá carinho, valorize. Se a beleza cruzar seu caminho, deleite-se. Por aquele momento, você estará sob a luz radiante dos astros, livre dos umbrais opressores.
Os Corvos sempre irão triunfar. Só não vive quem está morto por dentro.